A PENHORA DE ATIVOS FINANCEIROS NA EXECUÇÃO FISCAL

10 setembro 2014
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1.    A EXECUÇÃO FISCAL

 

A execução fiscal consubstancia o procedimento criado pelo legislador pátrio para a Fazenda Pública obter coercitivamente seus créditos junto aos seus devedores. Trata-se de procedimento especial permeado por garantias e privilégios, por vezes tidos como de duvidosa constitucionalidade pela doutrina[1], sempre em razão do especial credor dos valores executados, os quais se dividem em créditos tributários e créditos não-tributários, e do interesse público, pretensamente superior ao privado, que permeia o crédito público.

O indigitado especial credor é a Fazenda Pública, conceito que abrange a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as respectivas autarquias e fundações.

Dotada de um devido procedimento para a execução de seus devedores, à Fazenda não é permitido obter os valores que lhe são devidos por via indireta, como se dá com as chamadas sanções políticas, isto é, formas de percepção do crédito público através de exigências desproporcionais, desarrazoadas, normalmente mediante o impedimento de exercício de direitos, enquanto o débito não é liquidado.

Outra característica importante da execução fiscal, decorrência de sua natureza procedimental especial, é a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.[2] Daí decorre uma importante questão para os contribuintes executados mediante o procedimento da execução fiscal: a violente penhora de ativos financeiros, também chamada de penhora eletrônica ou online.

2. A PENHORA DE ATIVOS FINANCEIROS NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Até o advento da Lei nº 11.382/2006 o STJ posicionava-se no sentido de que a invasiva penhora eletrônica somente era viável após a demonstração, por parte do órgão de representação judicial da respectiva Fazenda Pública, do exaurimento das diligências em busca de bens penhoráveis de propriedade do executado.[3] Vale dizer, anteriormente à reforma da legislação processual, entendia-se, predominantemente, no meio jurídico[4], que o fato de o art. 655, I, do CPC, que elenca a ordem legal de preferência de bens penhoráveis, dispor incumbir ao devedor, “ao fazer a nomeação de bens, observar a seguinte ordem: I – dinheiro”, significava que a penhora preferencial se dava sobre dinheiro em espécie somente, jamais sobre montantes em depósito bancário.

No entanto, com a introdução no mundo jurídico da Lei nº 11.382/2006, o STJ aos poucos modificou seu posicionamento, o qual se solidificou como diretriz segura do comportamento fazendário nas execuções fiscais através de acórdão exarado em sede do procedimento de recursos repetitivos do art. 543-C do CPC.

Pois bem. A Lei 6.830/80, em seu artigo 9º, preceitua que, em garantia da execução, o executado poderá, entre outros, nomear bens à penhora, observada a ordem prevista no artigo 11, na qual o “dinheiro” exsurge com primazia.

Igualmente, com a modificação processual realizada pela Lei nº 11.382/2006, fora introduzido o art. 655-A ao Código de Processo Civil, que assim dispõe:

Art. 655-A. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exeqüente, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendo no mesmo ato determinar sua indisponibilidade, até o valor indicado na execução.

§ 1o As informações limitar-se-ão à existência ou não de depósito ou aplicação até o valor indicado na execução.

Ademais, a mesma Lei alterou o artigo 655 do mesmo Código de Processo citado:

Art. 655. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:

I – dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;

II – veículos de via terrestre;

III – bens móveis em geral;

IV – bens imóveis;

V – navios e aeronaves;

VI – ações e quotas de sociedades empresárias;

VII – percentual do faturamento de empresa devedora;

VIII – pedras e metais preciosos;

IX – títulos da dívida pública da União, Estados e Distrito Federal

com cotação em mercado;

X – títulos e valores mobiliários com cotação em mercado;

XI – outros direitos.

(…)

A partir daí, o STJ modificou sua compreensão da situação, como fica claro dos seguintes trechos do acórdão do REsp 1184765 / PA, que pacificou a matéria:

Deveras, antes da vigência da Lei 11.382/2006, encontravam-se consolidados, no Superior Tribunal de Justiça, os entendimentos jurisprudenciais no sentido da relativização da ordem legal de penhora prevista nos artigos 11, da Lei de Execução Fiscal, e 655, do CPC, e de que o bloqueio eletrônico de depósitos ou aplicações financeiras (mediante a expedição de ofício à Receita Federal e ao BACEN) pressupunha o esgotamento, pelo exeqüente, de todos os meios de obtenção de informações sobre o executado e seus bens e que as diligências restassem infrutíferas.

A introdução do artigo 185-A no Código Tributário Nacional, promovida pela Lei Complementar 118, de 9 de fevereiro de 2005, corroborou a tese da necessidade de exaurimento das diligências conducentes à localização de bens passíveis de penhora antes da decretação da indisponibilidade de bens e direitos do devedor executado.

A antinomia aparente entre o artigo 185-A, do CTN (que cuida da decretação de indisponibilidade de bens e direitos do devedor executado) e os artigos 655 e 655-A, do CPC (penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira) é superada com a aplicação da Teoria pós-moderna do Dialógo das Fontes, idealizada pelo alemão Erik Jayme e aplicada, no Brasil, pela primeira vez, por Cláudia Lima Marques, a fim de preservar a coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil.

Com efeito, consoante a Teoria do Diálogo das Fontes, as normas gerais mais benéficas supervenientes preferem à norma especial (concebida para conferir tratamento privilegiado a determinada categoria), a fim de preservar a coerência do sistema normativo.

(…)

Assim, a interpretação sistemática dos artigos 185-A, do CTN, com os artigos 11, da Lei 6.830/80 e 655 e 655-A, do CPC, autoriza a penhora eletrônica de depósitos ou aplicações financeiras independentemente do exaurimento de diligências extrajudiciais por parte do exeqüente.

À luz da regra de direito intertemporal que preconiza a aplicação imediata da lei nova de índole processual, infere-se a existência de dois regimes normativos no que concerne à penhora eletrônica de dinheiro em depósito ou aplicação financeira: (i) período anterior à égide da Lei 11.382, de 6 de dezembro de 2006 (que obedeceu a vacatio legis de 45 dias após a publicação), no qual a utilização do Sistema BACEN-JUD pressupunha a demonstração de que o exeqüente não lograra êxito em suas tentativas de obter as informações sobre o executado e seus bens; e (ii) período posterior à vacatio legis da Lei 11.382/2006 (21.01.2007), a partir do qual se revela prescindível o exaurimento de diligências extrajudiciais a fim de se autorizar a penhora eletrônica de depósitos ou aplicações financeiras.

Conforme elucidado pelo julgado, após o advento da disciplina da Lei nº 11.382/2006, o regime jurídico adotado permite a penhora eletrônica de depósitos ou aplicações financeiras, ainda que não exauridas as diligência extrajudiciais por parte de exeqüente: a Fazenda Pública e sua representação judicial.

A fundamentação do acórdão é discutível, buscando aplicar a Teoria do Diálogo das Fontes, utilizada no Brasil, primeiramente, no âmbito da tutela do consumidor, para justificar uma postura mais agressiva por parte dos órgãos fazendários. Atualmente, a Fazenda Pública utiliza-se, na grande maioria dos casos, da penhora eletrônica de ativos financeiros como primeira providência para a busca da satisfação de seus créditos, somente indo atrás dos demais bens do executado quando infrutífera esta última.

LIMITES À PENHORA ELETRÔNICA

Inobstante a prerrogativa reconhecida à Fazenda por parte do STJ, esta não pode ser utilizada de maneira abusiva, de molde a lesar os direitos dos contribuintes. Logo, deve respeitar o devido processo legal, ou seja, o procedimento criado para sua consecução.

Tal procedimento, nem sempre observado em sede de execuções fiscais, envolve o requerimento do credor, sem o qual não pode haver qualquer providência por parte do Estado-juiz. Isto se dá não só porque o art. 655-A do CPC assim preceitua, mas devido ao modelo processual adotado em nosso ordenamento jurídico: o princípio dispositivo, consoante o qual o juiz somente pode atuar de ofício, sem provocação, em questões que envolvem interesses além dos meramente privados, ao mesmo tempo em que deve resguardar a igualdade processual das partes.

Na execução fiscal, a experiência mostra que tal requisito nem sempre é observado, tanto pela Fazenda, quanto pelo órgão judicial, o que consubstancia vício a ser corrigido pelas instâncias judiciais superiores, sob pena de grave aviltamento dos direitos dos contribuintes.

Além do mais, imprescindível seja exarada decisão judicial fundamentada, expondo os motivos pelos quais entende cabíveis as providências que estão a ser tomadas, tendentes à penhora de ativos financeiros depositados em conta bancária.

É garantia constitucional, integrante do devido processo legal, a decisão judicial fundamentada (CF, art; 93, IX), que garanta a dúplice função da fundametação: (i) a interna ao processo, garantindo que as partes tenham conhecimento das razões pelas quais sua pretensão foi negada, ou sua esfera jurídica restringida e, assim, possam impugnar a decisão, visando sua alteração pelas superiores instâncias; (ii) a externa, garantidora da legitimidade democrática das decisões judiciais, que como são expendidas por órgãos estatais – órgãos judiciais – devem se abrir à crítica externa como medida de publicidade, aperfeiçoamento e afastamento do nefasto arbítrio.

Apresentada decisão na qual falte fundamentação, deve a mesma ser impugnada e declarada sua invalidade perante as cortes judiciais superiores.

Ainda devem-se observar as limitações impostas pelo direito fundamental ao sigilo bancário. Conforme preceitua o art. 655-A do CPC, em seu parágrafo primeiro, “as informações limitar-se-ão à existência ou não de depósito ou aplicação até o valor indicado na execução”. Vale dizer, qualquer providência por parte da instituição financeira que extrapasse as informações sobre a mera existência, ou não, de depósito ou aplicação no montante indicado deve ser atacada com o remédio jurídico devido, e fulminada porquanto aviltante aos direitos dos contribuintes.

Impende considerar que a penhora de ativos financeiros que resulte na indisponibilidade de valores irrisórios, não só insuficientes para cobrir as custas da execução[5], mas face ao valor da concreta execução em que a penhora  online se deu, deve ser desconstituída, dada a desproporcionalidade da concreta providência, que acaba por afetar o contribuinte de uma maneira extremamente gravosa, ao passo que mal satisfaz qualquer pretensão creditícia fazendária.

Como fica claro, a mudança de posicionamento do STJ, como reflexo da mudança na legislação processual, restringe um pouco mais as garantias dos executados em sede de execução fiscal. No entanto, ainda existem limites à nova prerrogativa fazendária, a qual não pode ser exercida de forma abusiva, sob pena de nulidade.[6]


[1] Cf. MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial). 6ª Ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 848.

[2] LEF, art. 1º – A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.

[3] Cf. EREsp 1.052.081/RS, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, Primeira Seção, julgado em 12.05.2010, DJe 26.05.2010.  Precedentes das Turmas de Direito Público: REsp 1.194.067/PR, Rel. Ministra  Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 22.06.2010, DJe 01.07.2010; AgRg no REsp 1.143.806/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 08.06.2010, DJe 21.06.2010; REsp 1.101.288/RS, Rel. Ministro  Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 02.04.2009, DJe 20.04.2009; e REsp 1.074.228/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 07.10.2008, DJe 05.11.2008. Precedente da Corte Especial que adotou a mesma exegese para a execução civil: REsp 1.112.943/MA, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 15.09.2010.

[4] Entendendo pela errônea interpretação do art. 655, I, anteriormente à reforma Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. V. 3. Execução. 5ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 277.

[5] CPC, art. 659, § 2º –  Não se levará a efeito a penhora, quando evidente que o produto da execução dos bens encontrados será totalmente absorvido pelo pagamento das custas da execução.

[6] O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou acerca da possibilidade de reiteração do pedido de penhora online, via sistema Bacenjud, desde que observado o princípio da razoabilidade. Precedente: REsp. 1.323.032/RJ, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 14.08.2012.


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